2. O Complexo Médico‐Acadêmico‐Científico‐Industrial‐Militar (MACIM)
Que aparência têm esses inimigos da raça humana? Eles têm um sinal escrito na testa, para poder ser identificados, evitados e condenados como criminosos? Não. Pelo contrário. Eles são respeitáveis. São honrados. Chamam‐se a si mesmos e são chamados gentis‐homens. Que paródia da expressão ›gentil homem‹! Eles são os pilares do Estado, da Igreja, da sociedade. Ajudam a caridade pública e privada com os excessos da sua riqueza. Bancam instituições. Em suas vidas privadas são gentis e atenciosos. Obedecem a lei, sua lei, a lei da propriedade. Mas existe um sinal pelo qual esses gentis homens de armas podem ser revelados. É só ameaçar uma redução nos seus lucros monetários e a besta dentro deles despertará com um rosnado. Tornam‐se implacáveis como selvagens, brutais como loucos, impiedosos como algozes. Homens como esses precisam perecer, se for para a raça humana continuar. Não há como haver paz permanente no mundo enquanto eles vivam. Uma organização da sociedade humana que os permita existir deve ser abolida.
Esses homens produzem as feridas.
Norman Bethune, Wounds1
A ciência é um produto da sociedade que a possui. Aonde isso nos leva? Como cientistas, por um lado, somos buscadores de conhecimento, foi isso que nos trouxe até a ciência em primeiro lugar; somos pessoas que querem aliviar o sofrimento. Por outro lado, somos empregados — preocupamo‐nos com empregos, financiamento; nesse sentido, somos os trabalhadores assalariados das minas de teorias, não muito diferentes dos tecelões de Lancashire e outros setores que, primeiro, originalmente, eram profissões livres e se tornaram então gradualmente proletarizadas — de modo que o trabalho contingente, o trabalho em tempo parcial, o trabalho adjunto, fazem parte do processo de perda de independência. Já não controlamos a agenda de nossas pesquisas ou as condições de trabalho. Certamente não controlamos o que se tornam os produtos do nosso trabalho.
Richard Levins, As Duas Caras da Ciência2
Primeiramente, precisamos superar uma crítica superficial e inadequada que predomina em muitos círculos de esquerda e tende a servir como uma espécie de clichê »lacrador«, impedindo um exame mais profundo das verdadeiras circunstâncias históricas. Corporações médicas e científicas são frequentemente acusadas de superfaturar — isto é, cobrar indevidamente por produtos de valor, por meio de patentes, monopólios, captura regulatória etc. Também são acusadas de restringir e controlar informações médicas, a fim de manter posições de monopólio e extrair renda, de maneira que serviços como a LibGen e a Z‑Library, que obviamente levariam a uma maior produção de ciência, especialmente por cientistas no terceiro mundo, são perseguidos implacavelmente. Há muita verdade nessas críticas e elas certamente complementam o argumento geral de que as condições atuais não são adequadas ao florescimento da ciência.
Porém, sua maior falha, que esta seção procurará abordar, é a presunção de que os produtos fabricados pelo que vou chamar de »complexo médico‐acadêmico‐científico‐industrial‐militar« (MACIM)3 sempre contêm um valor de uso genuíno para os consumidores. É aqui que um entendimento completo da monopolização, da financialização e do imperialismo parece se perder, dando lugar, conscientemente ou não, a uma curiosa imagem idílica de livre concorrência capitalista. Tais críticas tendem a imaginar que os consumidores estejam numa posição relativamente decente para avaliar se os produtos médico‐científicos são de fato bons para eles (a curto, médio ou longo prazo), que agências governamentais tendem a fazer suas compras de acordo com os interesses da população, adquirindo produtos e serviços que realmente a beneficiem, e que produtos inferiores — ou ao menos aqueles que sejam inúteis e perigosos — não passarão nem nos testes regulatórios, nem nos de competitividade do mercado.
Contudo, como será mostrado mais adiante, isso não poderia estar mais longe da realidade. De fato, a cartelização característica dessa esfera é tão profunda e pervasiva que realmente requer um novo conceito — porque inclui ainda a enorme captura regulatória de agências supostamente incumbidas de fiscalizar essas indústrias, ao ponto em que tais agências se subordinam a elas completamente. Além disso, cada vez mais produtos e serviços médicos não são de forma alguma escolhidos pelos consumidores, e sim por fornecedores, seguradoras e governos (cada vez mais em conluio uns com os outros). Produtos como vacinas, direta ou indiretamente, são forçados aos consumidores por governos, empregadores e escolas. Ivan Ilich traçou algumas das características peculiares do tratamento médico como produto — por um lado, de certa forma, inadequado a se subordinar às relações capitalistas normais e, por outro, singularmente apropriado para as relações hipermonopolísticas que caracterizam o capitalismo atualmente:
»Tratamento médico é algo incerto e imprevisível; muitos consumidores não o desejam, não sabem que precisam dele, nem sabem de antemão quanto lhes vai custar. Não podem aprender com a experiência. Têm de contar com que o provedor lhes diga se foram bem servidos e não podem lhe devolver o serviço ou solicitar um conserto. Serviços médicos não são anunciados da mesma forma que outras mercadorias e o produtor desencoraja comparações. Uma vez que o consumidor o adquiriu, não pode mudar de ideia no meio do tratamento. Ao definir o que constitui doença, o produtor médico tem o poder de selecionar seu consumidor e anunciar alguns produtos que serão forçados sobre ele, se necessário, sob intervenção policial: os produtores podem até vender internação forçada para os deficientes e asilos para os retardados mentais. Processos por má conduta mitigaram a sensação de impotência do leigo em muitos desses aspectos, mas também, basicamente, reforçaram a determinação do paciente em insistir em tratamentos que sejam considerados adequados pela opinião médica informada.«4
Isso não pode ser reduzido a simples relações capitalistas.
Essa visão ingênua também esquece (de modo altamente seletivo) o eterno fenômeno de »vender gato por lebre«: particularmente na esfera do tratamento médico, os seres humanos são vulneráveis ao engano e à fraude. Como observou o historiador da medicina Roy Porter, »a proeminência da medicina se baseou apenas em pequena escala na sua capacidade de fazer os doentes melhorarem. Isso sempre foi assim e continua sendo.«5 Se bem que práticas enganosas sejam reconhecidas e que a supressão de efeitos colaterais ao menos costumasse ser uma crítica muito comum levantada por esquerdistas (antes que tais considerações fossem prontamente banidas com o lançamento das vacinas da »covid«), poucos estão dispostos a contemplar a verdadeira extensão da fraude no seio de muitas ciências médicas. Isso apesar do fato bastante revelador de que a maioria das indústrias farmacêuticas, de forma mais ou menos aberta, gasta mais dinheiro manipulando a população a comprar seus produtos do que com desenvolvimento e pesquisa. Por exemplo, 9 em cada 10 grandes indústrias farmacêuticas gastaram mais — às vezes bem mais — em marketing e vendas do que em pesquisa e desenvolvimento no ano de 2013.6
É importante não analisar isso ingenuamente, como se fosse um simples investimento em persuadir pessoas por meio de anúncios. Como aponta German Lopez, »boa parte do marketing que essas empresas fazem tem como público‐alvo específico os médicos«,7 isto é, o suborno de profissionais de saúde, cujo poder de prescrição, para não falar da sua influência pessoal como »figuras de confiança«, complica enormemente as conexões entre os aparentes »compradores« e »vendedores« na equação. O componente gasto em publicidade ostensivamente convencional, como comerciais de televisão, também não pode ser tratado aqui de maneira acrítica ou ingênua. Os principais canais de notícias não vendem apenas os »olhos e ouvidos« dos telespectadores para anúncios específicos, mas também o mais importante: propaganda, ou seja, cobertura favorável. É por isso que é essencial considerar o aspecto monopolístico e a extensão da concentração. Por exemplo, em 2018, em todos os principais canais de notícias na TV a cabo dos EUA, os maiores comerciais eram de algum produto ostensivamente médico.8 Isso implica uma enorme influência na cobertura de notícias, sendo uma fonte considerável de vieses e autocensura.
O que é especialmente revelador a respeito disso é que as pessoas menos dispostas a contemplar a profundidade da fraude e da enganação praticadas pelo complexo MACIM desprezam constante e peremptoriamente, sem a menor investigação, todas as críticas a esse complexo como sendo motivadas por fraude e avareza. Praticantes honestos e decentes de medicina ou nutrição alternativas são difamados e denunciados. Ceticismo em relação a vacinas é atribuído, persistente e absurdamente, aos esquemas lucrativos de alguns charlatães da medicina alternativa, enquanto presume‐se que as intenções dos grandes fabricantes de vacinas — apesar de todos eles, como pessoas jurídicas, serem criminosos condenados — sejam puras como a neve, é claro (ou, na versão mais sofisticada, presume‐se que eles sejam efetivamente forçados pelo mercado ou pelas agências reguladoras a fabricar bons produtos, pelos quais eles apenas cobram demais). Sem dúvida, existe fraude, golpismo e avareza no mundo da medicina natural e alternativa. No entanto, não é nada comparado ao que existe na ciência médica dominante, controlada por corporações, supostamente legítima. Isso se deve, entre outras razões, ao mercado muito mais genuíno e competitivo em cuja direção a medicina alternativa se orienta, tendo como público‐alvo uma classe muito mais crítica de consumidores.
Apesar disso, uma operação psicológica massiva e altamente eficaz conseguiu inverter completamente o senso comum, instilando em muitas pessoas a ideia de que qualquer um tentando ganhar a vida honestamente com a venda de tratamentos médicos alternativos de qualquer tipo deve ser uma fraude maliciosa, enquanto os cientistas e médicos oportunistas e covardes que trabalham para o complexo MACIM são simplesmente incapazes de mentir. Profissionais de saúde, cientistas e pesquisadores a serviço do MACIM são retratados como amantes idealistas da humanidade, sendo‐lhes perdoados, sem pensar duas vezes, todos os pecados por se emaranhar no mercado.
Em contraste, cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde que decidem criticar o MACIM, ou mesmo apenas apresentar uma alternativa a ele, deparam‐se com enormes riscos sociais e econômicos: penúria, perda de licenças médicas, processos judiciais apoiados aberta ou secretamente por governos e corporações, ostracismo social, ou até, como no caso de Brandy Vaughan,9 possivelmente assassinato. Mas quando esses indivíduos fazem as mais modestas tentativas de assegurar sua própria existência e seu sustento, os mesmíssimos defensores dos lacaios corporativos explodem na mais histérica indignação com »esses trambiqueiros golpistas«. É extremamente difícil argumentar com esses »amantes da ciência«, sobretudo quando se toca em assuntos nos quais eles têm um investimento psíquico muito entranhado, como, por exemplo, vacinas. No entanto, dificilmente se pode surpreender com esse fato — aqueles orçamentos todos com publicidade certamente não foram jogados no lixo.
Sociedade Médica
Em sua obra Nêmesis Médica, de 1975, Ivan Ilich lançou uma crítica contundente da corrupção gradual das sociedades ocidentais pela medicina industrializada, que vale a pena citar aqui de forma extensa. Conforme ele observou, a sociedade estava sendo »rearranjada em benefício do sistema de saúde« e, em consequência, estava se tornando »cada vez mais difícil cuidar da própria saúde. Produtos e serviços poluem os domínios da liberdade.«10 Ele atribuiu isso à forte predisposição para a atomização e a reificação que caracterizou a era burguesa:
»A Antiguidade não conhecia nenhum parâmetro de doença. Os contemporâneos de Galileu foram os primeiros a tentar aplicar medições aos doentes, mas sem muito sucesso. Como Galeno havia ensinado que a urina era secretada diretamente pela veia cava e que sua composição era uma indicação direta da natureza do sangue, os médicos provavam e cheiravam a urina e a avaliavam à luz do sol e da lua. Após o século 16, os alquimistas haviam aprendido a medir gravidade específica com uma precisão considerável e aplicavam seus métodos à urina dos doentes. Dezenas de significados distintos e divergentes eram atribuídos a alterações, a fim de enxergar um diagnóstico e um significado curativo em qualquer nova medição que eles aprendiam a fazer. O uso de medições físicas preparou o terreno para a crença na existência real de doenças e na sua autonomia ontológica da percepção do médico e do paciente. O emprego de estatísticas sustentava essa crença. Elas »mostravam« que as doenças estavam presentes no ambiente e podiam invadir e infectar as pessoas.«11
Notamos de passagem aqui o fato histórico interessante de que os primeiros testes clínicos usando estatísticas, com a pretensão de fornecer »dados sólidos« indicando que »a varíola estava ameaçando o Massachusetts« e que »as pessoas que tinham sido inoculadas estavam protegidas contra os seus ataques«, foram conduzidos em 1721 por Cotton Mather.12 A enfática campanha de Mather por quarentena e inoculação para combater a varíola provocou uma resistência intensa por parte da população de Boston, culminando num ataque de granada à sua casa.13 O fato de os vacineiros não celebrarem com mais frequência esse seu ilustre precursor pode ter algo a ver com o fato de que, na história, ele é mais lembrado por seu envolvimento nos processos das Bruxas de Salém — e por sua zelosa crença na existência de bruxas. O emaranhado de Caça às Bruxas e Revolução Científica com a batalha mais ampla para subordinar e proletarizar o restante do campesinato foi explorado de forma brilhante por Silvia Federici em Calibã e a Bruxa. Nessa obra, ela apontou:
»Na filosofia mecanicista se percebe um novo espírito burguês, que calcula, classifica, faz distinções e degrada o corpo só para racionalizar suas faculdades, o que aponta não apenas para a intensificação de sua sujeição, mas também para a maximização de sua utilidade social. […] Certamente, nem Hobbes nem Descartes dedicaram muita atenção aos assuntos econômicos, e seria absurdo ler em suas filosofias as preocupações cotidianas dos comerciantes ingleses ou holandeses. No entanto, não podemos evitar observar as importantes contribuições que suas especulações em torno da natureza humana fizeram à aparição de uma ciência capitalista do trabalho. A concepção de que o corpo era algo mecânico, vazio de qualquer teleologia intrínseca […], pretendia fazer inteligível a possibilidade de subordiná‐lo a um processo de trabalho que dependia cada vez mais de formas de comportamento uniformes e previsíveis.
Uma vez que seus mecanismos foram desconstruídos e ele próprio foi reduzido a uma ferramenta, o corpo pôde ser aberto à manipulação infinita de seus poderes e de suas possibilidades. Fez‐se possível investigar os vícios e os limites da imaginação, as virtudes do hábito e os usos do medo, como certas paixões podem ser evitadas ou neutralizadas e como podem ser utilizadas de forma mais racional. Neste sentido, a filosofia mecanicista contribuiu para incrementar o controle da classe dominante sobre o mundo natural, o que constitui o primeiro passo — e também o mais importante — no controle sobre a natureza humana. Assim como a natureza, reduzida à »Grande Máquina«, pôde ser conquistada […], da mesma maneira o corpo, esvaziado de suas forças ocultas, pôde ser »capturado em um sistema de sujeição« em que seu comportamento pôde ser calculado, organizado, pensado tecnicamente e ›investido de relações de poder‹.«14
É importante destacar que, evidentemente, o modelo mecanicista e atomista do mundo trouxe ideias novas e reais, possibilitando de fato a exploração mais eficiente da natureza e do homem. Isso não exclui o fato de ele ter se tornado, mais tarde, um empecilho à continuação do desenvolvimento científico, nem significa que possamos entender por completo seu surgimento e sua persistência sem contextualizá‐lo na história da luta burguesa por dominância social, política e econômica.
Ilich observa que, em meados do século 19, Galeno ainda era citado com aprovação ao declarar que »não se pode descobrir nenhum peso, nenhuma forma, nenhum cálculo ao qual referir um julgamento de saúde e doença. Nas artes médicas não existe certeza, a não ser nos sentidos do médico.«15 A célebre formulação da teoria dos germes por Robert Koch, em finais do mesmo século — que, como aponta Lewontin, não teve nenhum impacto que possa ser detectado por qualquer métrica geral de saúde ou bem‐estar16 —, marca uma evidente mudança de rumo. Ilich traça a transformação desta forma:
»À medida que o interesse do médico passava do doente para a doença, o hospital se tornava um museu de doenças […]. A percepção de que o hospital era o lugar lógico para estudar e comparar »casos« se desenvolveu em fins do século 18 […]. A abordagem clínica do mal‐estar deu origem a uma nova linguagem, que falava sobre as doenças à beira do leito, e a um hospital reorganizado e classificado por doenças, para a exibição de enfermidades aos estudantes. […] Durante todo o século 19, a patologia se manteve em sua maior parte como a classificação de anomalias anatômicas. Somente por volta do final do século os alunos de Claude Bernard começaram a catalogar e categorizar também a patologia das funções. Tal como a doença, a saúde adquiriu um status clínico, tornando‐se a ausência de sintomas, e os padrões clínicos de normalidade passaram a ser associados ao bem‐estar.«17
Contudo, em 1975, Ilich argumentou que
»a era da medicina de hospital, que da ascensão ao declínio não durou mais que um século e meio, chegou a um fim. A medição clínica se difundiu pela sociedade. A sociedade se tornou uma clínica e todos os cidadãos se tornaram pacientes, cuja pressão sanguínea está constantemente sendo monitorada e regulada para se encaixar nos limites »normais«. Os problemas acentuados de poder, dinheiro, acesso e controle que dominam os hospitais em toda parte podem ser interpretados como sintomas de uma nova crise no conceito de doença. Essa é uma crise de verdade, porque admite duas soluções opostas, ambas as quais tornariam os hospitais atuais obsoletos.«18
Como numa espiral viciosa, a medicina corporativa ocidental elaborou uma bateria de testes, índices, medições e outros diagnósticos que serviram cada vez mais para preterir, ostracizar ou até criminalizar uma existência não medicada. Isso ocorre não só através do marketing, ou da pressão por parte de profissionais de saúde bem financiados e altamente doutrinados, mas também pelo conluio com seguradoras, legisladores, provedores de serviços sociais, instituições educacionais e o poder judiciário. Invariavelmente, isso passa pelas lentes de outras tecnologias de controle social do capitalismo moderno, causando os impactos mais brutais nas minorias raciais, sexuais e de gênero, bem como em mulheres e crianças. Ina May Gaskin e Jennifer Margulis, por exemplo, documentaram em termos marcantes a forma como o processo do parto, nas nações capitalistas ocidentais, foi transformado pela medicina corporativa numa manopla cruel, irracional, desumanizadora e traumatizante para as mulheres e seus filhos (antes e depois do nascimento).19 Ilich observa que:
»Uma sociedade industrial avançada deixa as pessoas doentes porque lhes tira a capacidade de lidar com seu ambiente e, quando elas »pifam«, coloca uma prótese clínica ou terapêutica como substituto para os relacionamentos danificados. As pessoas se rebelariam contra tal ambiente, se a medicina não explicasse seu desnorteio biológico como um defeito na sua saúde, em vez de um defeito no modo de vida que lhes é imposto ou que elas impõem a si mesmas.«20
É importante enfatizar a diferença entre essa crítica e o argumento darwinista social de que uma sociedade se enfraquece ao tratar os doentes e os deficientes. A questão não é que as pessoas não devam ser tratadas ou que não se deva cuidar delas, mas que os arranjos sociais atuais fazem com que que o tratamento e o cuidado que elas provavelmente vão receber seja inadequado e muitas vezes contraproducente, e que elas podem e devem ser melhor cuidadas. A melhor maneira de garantir isso é justamente assegurar que elas estejam tão emancipadas, informadas e envolvidas no próprio tratamento quanto possível.
Em contraste, seria difícil imaginar um arranjo com menor chance de produzir bons tratamentos do que o nosso, em que as pessoas recebendo tratamento ou cuidados médicos têm pouquíssima autonomia, estando sujeitas a um aparato de saúde que é massivamente incentivado a lhes causar dano. Na verdade, é um fato notório — e silenciado em larga escala — que uma proporção inacreditável do tratamento médico moderno existe apenas para corrigir os males causados direta ou indiretamente por intervenções anteriores. Ilich, por exemplo, cita um »alto oficial do Departamento de Saúde, Educação e Bem‐estar Social dos EUA«, aposentado em 1973, que observou que »80% de todos os fundos que passavam por seu departamento não forneciam benefícios comprováveis à saúde« e que »grande parte do restante era gasto com a mitigação de danos iatrogênicos«.21 Ilich apontou ainda que:
»Entre as intervenções diagnósticas e terapêuticas que comprovadamente fazem mais bem do que mal, a imensa maioria possui duas características. 1) Os recursos materiais para realizá‐las são extremamente baratos e 2) elas podem ser arranjadas e projetadas para uso próprio ou aplicação por membros da família. Por exemplo, na medicina canadense, o custo daquilo que é benéfico de forma significativa à saúde é tão baixo, que esses mesmos recursos poderiam ser disponibilizados a toda a população da Índia pelo mesmo valor que, atualmente, é desperdiçado lá em medicina moderna. A habilidade necessária para a aplicação das ferramentas de diagnóstico e tratamento usadas com mais frequência é tão elementar, que o simples seguimento cuidadoso das instruções, por parte de pessoas diretamente envolvidas, provavelmente garantiria um uso mais eficaz e responsável do que a prática médica jamais seria capaz. O restante, em sua maior parte, poderia provavelmente ser melhor administrado por amadores »descalços« com um profundo comprometimento pessoal do que por médicos, psiquiatras, dentistas, parteiras, fisioterapeutas ou optometristas profissionais.«22
Ilich aqui provavelmente esteja forçando a barra — é claro que serviços médicos mais complexos podem ser desejáveis e benéficos. Mas para que eles o sejam, precisaríamos de um arranjo social em que essa complexidade não comprometa a transparência ou o controle popular democrático. Vamos expandir essa possibilidade na Parte 4. A argumentação de Ilich também é caracterizada por um desvio de ultraesquerda que atribui agência demais a tendências culturais autoperpetuantes, em vez de contextualizá‐las propriamente num relato materialista da luta de classes. Isso é típico de genealogias no estilo foucaultiano, produzindo o efeito de culpar excessivamente as massas por sua suposta cumplicidade com o que lhes é imposto.
Dentro do movimento que se coligou em torno da resistência às medidas relacionadas ao coronavírus, essa perspectiva misantrópica encontrou uma base significativa em »dissidentes« e »críticos« pequeno‐burgueses, sempre atraídos por uma caracterização que lhes permita culpar as massas e escusar a classe dominante. Tal perspectiva, porém, só consegue se manter mediante uma negação do poder e da influência avassaladores do complexo MACIM (e da classe dominante em si, que o instrumentaliza em busca dos seus próprios interesses).
Concentração, Cartelização, Corrupção: Motivos Para o Niilismo Médico?
Não é apenas nos setores do complexo MACIM em contato direto com o mercado que a fraude, o engano e a corrupção são norma. Uma análise econômica detalhada das tendências monopolistas nessa esfera está além do âmbito deste trabalho e o autor desconhece a existência de algum estudo que já cubra esse aspecto (o que talvez já seja um fato revelador em si). Contudo, para o presente fim, deve ser suficiente citar algumas das evidências mais importantes de que uma rede interligada de cartéis atingiu tal controle não só do mercado, mas também sobre uma ampla gama de mecanismos reguladores, que chega a formar uma relação que transcende o monopólio em seu sentido tradicional.
Isso alcançou um nível em que até mesmo acadêmicos, pesquisadores, cientistas e médicos burgueses — de dentro do MACIM ou adjacentes a ele — vêm sendo obrigados a questionar a confiabilidade básica da pesquisa médica moderna como um todo, em níveis fundamentais. Em seu livro de 2018 Niilismo Médico, Jacob Stegenga defende, de forma convincente, a tese radical de que a extensão e a profundidade da corrupção na ciência médica, juntamente com a deterioração dos mecanismos para retificá‐la, significam que »existem menos intervenções médicas eficazes do que a maioria das pessoas imagina e nossa confiança nessas intervenções deveria ser baixa, ou pelo menos muito mais baixa do que é agora.«23 Vamos voltar depois com mais profundidade aos argumentos centrais de Stegenga. Por enquanto, vale a pena citar de forma extensa seu levantamento de citações céticas de figuras proeminentes:
»O trabalho feito por médicos, epidemiologistas e jornalistas científicos em defesa do niilismo médico é vasto. Exemplos recentes incluem livros de Marcia Angell (The Truth About Drug Companies, 2004), Moynihan e Cassels (Selling Sickness, 2005), Carl Elliott (White Coat, Black Hat, 2010), Ben Goldacre (Bad Pharma, 2012) e Peter Gøtzsche (Deadly Medicines and Organized Crime, 2013), além de artigos de epidemiologistas como John Ioannidis, Lisa Bero, Peter Jüni e Jan Vanderbroucke. Esses pensadores não são outsiders malucos, e sim figuram entre os mais proeminentes e respeitados médicos e epidemiologistas do mundo. Por exemplo, a ex‐editora de uma das maiores revistas médicas [Marcia Angell, ex‐editora do New England Journal of Medicine] afirmou que, »nos últimos anos, apenas uns poucos medicamentos realmente importantes foram colocados no mercado«, enquanto a maioria são »drogas de benefício duvidoso« (Angell, 2004). Ou considere a posição do epidemiologista John Ioannidis, que o próprio título de seu artigo — »Por Que a Maioria das Descobertas Científicas Publicadas É Falsa« (2005) — sugere. O editor atual de outra eminente revista médica [Richard Horton, editor da revista The Lancet] teve o seguinte a dizer sobre a ciência médica contemporânea: »afligida por estudos com espaços amostrais pequenos, efeitos minúsculos, análises exploratórias inválidas e conflitos de interesse flagrantes, a ciência se voltou rumo às trevas« (Horton, Offline, 2015).«24
Qual é exatamente a razão de tal ceticismo? Primeiro, vamos considerar a corrupção das agências reguladoras. Um estudo de 2006 da JAMA25 mostrou que na FDA,26 »em 73% das reuniões, pelo menos um membro da equipe consultora em questão tinha conflitos de interesse« e que, para surpresa de ninguém, »influenciava o comportamento dos votantes. Quando os membros do painel com conflitos de interesse eram excluídos das votações, o julgamento do produto em questão era muito menos favorável.« Apesar desse fato, »somente em 1% dos casos os membros do painel com conflitos de interesse relevantes foram desqualificados.«27
No entanto, não é uma simples questão de interesses individuais divergentes. Graças a legislações como a Taxa de Uso de Medicamentos sob Prescrição, de 1992,28 as agências governamentais que supostamente fiscalizam a indústria farmacêutica tornaram‐se dependentes dela para o seu próprio financiamento. Portanto, corporativamente, como entidade, a FDA inteira está comprometida: quanto mais lucrativas as empresas que ela fiscaliza, mais financiamento os supostos fiscais recebem.29 Atualmente, nada menos de 45% do seu orçamento provêm da indústria farmacêutica.30 Além disso, a FDA depende de estudos conduzidos pela própria indústria, sendo incumbida apenas de avaliar a informação por ela fornecida. Não possui a equipe ou a capacidade para conduzir seus próprios estudos, ou para testar e replicar os estudos que lhe são submetidos — e, assim, muitos estudos nunca são replicados.
A lei de compensação por danos causados pela vacinação infantil,31 aprovada no governo Reagan dos EUA em 1986, ilustra ainda melhor a dinâmica profunda que este artigo — juntamente com meu texto anterior sobre imperialismo32 — procura evidenciar. Nos anos 1970, a preocupação pública com a encefalopatia estava diminuindo os índices de adesão voluntária à vacina DPT, enquanto crescia o número de processos judiciais relacionados a vacinas. Por volta de 1985, fabricantes de vacinas estavam lutando para obter um seguro contra imputabilidade. Então, o congresso interveio, retirando todas as responsabilidades dos fabricantes e transferindo‐as ao governo — ou seja, à população, como contribuinte. Em consequência, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS) precisa defender na Justiça as vacinas já aprovadas contra qualquer acusação de que elas causam dano — o que lhe dá um incentivo forte e direto a suprimir (ou pelo menos a não financiar e publicar) qualquer informação que possa ser usada contra elas para esse fim. Engelbrecht et al. apontam a decisão de um alto funcionário do HHS, Tom Insel, de abortar um estudo de 16 milhões de dólares sobre a associação entre vacinação e autismo, em 2009, explicitamente pelo motivo de que ele poderia ser usado contra o HHS num tribunal.33
A transferência do ônus para a população e, ao mesmo tempo, o incentivo ao suposto órgão regulador para que não exponha nenhum mal causado por vacinas certamente ajudaram a salvar um produto que, fora de condições de monopólio, teria sido enxotado do mercado. Com efeito, desde 1986, o número de inoculações recomendadas nos EUA saltou de 12 doses de 3 vacinas para 54 doses de 13 vacinas, transformando um negócio outrora secundário de »apenas« um bilhão de dólares numa indústria de 50 bilhões de dólares.34 Como observou Robert F. Kennedy Jr.:
»Como as vacinas são isentas de responsabilização — e efetivamente compulsórias para um mercado cativo de 76 milhões de crianças —, o incentivo comercial para mantê‐las seguras é ínfimo. […] As quatro empresas que fabricam praticamente todas as vacinas do calendário estão todas condenadas por crimes. Em conjunto, desde 2009, elas já pagaram mais de 35 bilhões de dólares por fraudar regulações, subornar e mentir para oficiais governamentais e médicos, falsificar ciência e deixar um rastro de mortes e sequelas por produtos que elas sabiam ser perigosos e que venderam fingindo segurança e eficácia.«35
É preciso destacar que os próprios funcionários do HHS podem recolher, direta e pessoalmente, até 150 mil dólares por ano em royalties; por exemplo, oficiais de alto escalão faturam com cada venda da vacina de HPV da Merck.36 Kennedy Jr. aponta que:
»45% do orçamento anual da FDA provém da indústria farmacêutica. A Organização Mundial de Saúde (OMS) obtém quase metade do seu orçamento de fontes privadas, inclusive de empresas farmacêuticas e suas fundações aliadas. E o CDC, francamente, é uma empresa de vacinas; possui 56 patentes de vacinas, comprando e distribuindo 4,6 bilhões de dólares por ano mediante o programa Vacinas Para Crianças, o que equivale a mais de 40% de seu orçamento total.«37
Notoriamente, nada menos que 10% do orçamento da OMS vem da Fundação Bill e Melinda Gates,38 o que faz dela o seu segundo maior financiador, atrás somente dos EUA.
Se não se pode confiar nas agências reguladoras, alguns poderiam argumentar que, pelo menos, é possível fiar‐se nos mecanismos internos da própria ciência e no seu espírito de corpo. Esse dificilmente é o caso. Um levantamento de 2005 entre cientistas, na revista Nature, observou que a maioria deles »admitiu que não evitaria atividades enganosas e que simplesmente deixaria de lado quaisquer dados que não servissem a seus propósitos.«39 Um relatório de 2006 da Transparência Internacional observou que 40 por cento dos estudos médicos de 2005 eram demonstravelmente falsos ou manipulados por seus patrocinadores.40 Uma questão que o presente trabalho sem dúvida vai elaborar, de qualquer maneira, precisa ser mencionada aqui: médicos e cientistas eram hiper‐representados no partido nazista, que conduzia uma prática fundamentada na grotesca pseudociência da eugenia — a qual, por sua vez, formava o »consenso científico« dominante no mundo capitalista à época.
Em sua palestra As Duas Caras da Ciência, Richard Levins observou que »o problema estratégico básico para os donos da ciência« é que »eles precisam de inovação… mas sem o ceticismo e a iconoclastia do iluminismo«. Em síntese, os donos da ciência precisam do que ele chama »uma revolução burguesa na ciência, mas não na cultura.« Ele argumenta que a principal forma pela qual eles alcançam isso é
»[…] concentrando os estudantes em especialidades cada vez mais estreitas, apressando o seu treinamento, domesticando você com dívidas o suficiente para você se comportar direito e fingindo que isso é a expansão do conhecimento… atualmente, a maioria dos departamentos de biologia lida com a biologia de uma pequena espécie de organismos; existem alunos que se formaram em biologia sem nunca ter caminhado por uma floresta ou mergulhado em meio a um recife de corais — que nunca foram a campo, observar as criaturinhas correndo para todo lado, ou passar um dia sentado no bosque olhando as sequoias crescerem.«41
Engelbrecht et al. fazem uma observação parecida, notando que
»a maioria dos próprios médicos […] raramente tem mais do que um entendimento leigo dos conceitos que pairam nos horizontes da biologia molecular […]. Se você pedir para a maioria dos médicos definir as características inconfundíveis dos retrovírus […], o mais provável é que eles deem de ombros ou lancem alguma resposta desconcertante e enigmática.«42
Aqui encontramos uma contradição estrutural que existe no coração do próprio progresso científico: quanto maior o conjunto do conhecimento científico existente, mais a pessoa que queira produzir nova ciência tem de aprender por intermediários, em vez de verificação independente — mesmo num nível secundário ou terciário. Isso quer dizer que ela não só não pode replicar e verificar os experimentos ou estudos sobre os quais deve se basear, como tampouco pode submeter esses estudos a escrutínio, ou sequer examinar o suficiente a instituição mediadora à qual se deve delegar esse escrutínio (por exemplo, um órgão regulador ou profissional, uma revista acadêmica, uma universidade etc.). Na verdade, até mesmo aqueles que só querem avançar até os limites já produzidos, dentro da mais estreita especialidade, precisam aceitar inúmeras afirmações feitas em outras áreas, sem poder verificá‐las ou mesmo aferi‐las de forma significativa.
O valente defensor da ciência médica moderna, a essa altura sem dúvida bastante ressentido, com certeza proclamará em frustração: não é uma questão de fé, ou da ética de cientistas individuais! Existe a revisão por pares! Essa instituição é talvez o maior pilar do mito do MACIM — mas quão eficaz ela realmente é? Ela está à altura da tarefa de colocar um fim a essas enormes tendências à corrupção e à fraude? Richard Smith, ex‐editor do prestigiado British Medical Journal, observou que »a revisão por pares é lenta, custa caro, desperdiça tempo acadêmico, é altamente seletiva, sujeita a vieses, fácil de abusar, ruim para detectar grandes defeitos e praticamente inútil para detectar fraude.«43 Em 1991, ele notou que havia
»talvez 30 mil revistas biomédicas no mundo, número esse que cresceu cerca de 7% ao ano, de forma constante, desde o século 17. Ainda assim, somente uns 15% das intervenções médicas se baseiam em evidências científicas sólidas […]. Isso ocorre, em parte, porque apenas 1% dos artigos nas revistas médicas é cientificamente sólido e, por outro lado, porque muitos tratamentos nunca sequer foram avaliados.«44
Engelbrecht et al. apontam que, de todos os casos de fraude documentados no livro O Grande Engano: Fraude na Ciência, de Horace Judson (2004), nem um único sequer foi identificado pelo sistema de revisão por pares.45 O fato, muito simples, é que a revisão por pares está sujeita às mesmas forças corruptoras que permeiam o complexo MACIM discutido anteriormente; ela não está acima de tais forças. Os revisores, afinal, são cientistas individuais, sujeitos a profundos incentivos perversos. Especialmente reveladora nesse aspecto foi a decisão do altamente prestigiado New England Journal of Medicine de flexibilizar as restrições aos revisores, permitindo‐lhes continuar a revisar ainda que ganhassem até 10 mil dólares por ano de empresas farmacêuticas — inclusive de empresas cujos produtos eles defendiam diretamente na própria revista! Qual foi o argumento para uma mudança tão duvidosa de diretrizes? A revista explicou que já não era capaz de encontrar um número suficiente de expertos sem nenhuma conexão financeira com a indústria farmacêutica.46
Dificilmente seja necessário dizer mais. Engelbrecht et al. observam também que a natureza anônima da revisão por pares já é problemática em si: tudo que é preciso para impedir que um estudo seja publicado é um único revisor que tenha um interesse pessoal direto em que o estudo não seja publicado! Além disso, deve‐se notar que o papel da revisão por pares não é meramente o de um juiz imparcial sobre um conjunto mais ou menos neutro de pesquisas publicadas, mas sim sobre um conjunto de pesquisas publicadas que já é profundamente tendencioso. Pois é necessário lembrar que, na era atual, a pesquisa médica e científica não é conduzida por entidades que podem ser democraticamente responsabilizadas a serviço do bem comum, e sim por forças opacas e secretas buscando o lucro e o controle privados. Há inúmeros meios pelos quais se pode distorcer um estudo para produzir um certo resultado e, uma vez que este é encontrado, não há nenhum incentivo a replicar o estudo para confirmar os resultados. Se você já tem os resultados desejados, para que procurar mais? Esse fenômeno foi exposto no famoso trabalho do epidemiologista John Ioannidis Por Que a Maioria das Descobertas Científicas Publicadas É Falsa, de 2005. Nele, o autor mostra que:
»A maior parte das pesquisas publicadas não satisfaz os bons padrões científicos de evidência […] e muitos estudos científicos são difíceis ou até impossíveis de reproduzir […]. Quanto maiores os preconceitos e interesses — financeiros ou de outra natureza — numa área científica, menor a probabilidade de que os resultados dos estudos sejam verdadeiros.«47
O fato mais importante a se considerar sobre a pesquisa científica na atualidade é que a sua imensa maioria não é publicada. Quando um estudo produz resultados diferentes daqueles desejados por seus financiadores, esses resultados raramente veem a luz do dia. Em primeiro lugar, é claro, isso ocorre porque um dano ou uma ineficácia potenciais, num produto que ainda possa chegar ao mercado de alguma outra forma, dificilmente são coisas que alguém gostaria de publicar. Mas ainda que uma empresa não pretenda colocar certo produto no mercado, ela tem um incentivo importante a não publicar dados sobre as limitações desse produto: se o fizesse, estaria ajudando potenciais concorrentes, que podem ter de desperdiçar tempo e recursos preciosos conduzindo os mesmos experimentos fúteis. Essa é apenas uma das inúmeras e óbvias ineficiências estruturais da pesquisa científica privada, guiada pelo lucro (ou pela inteligência militar secreta).
Além da ineficiência, esse fenômeno tem implicações ainda mais importantes quando considerado em escala completa. Como argumenta Jacob Stegenga em Niilismo Médico, precisamos reconhecer que todo estudo que encontramos publicado é uma amostra pequena, visível e profundamente não‐representativa, colhida de um vasto campo de pesquisas não‐publicadas que não vemos, nem podemos ver. É evidente que as pesquisas que chegam a ser publicadas são enormemente tendenciosas de duas formas: quase sempre sugerem eficácia positiva e dano inexistente ou mínimo, qualquer que seja o produto ou serviço potencialmente lucrativo sendo estudado (ou seus precursores, elementos etc.). O conjunto muito maior de pesquisas que não são publicadas tende a mostrar que os produtos testados são ineficazes, perigosos ou ambos. A importância desse fato é ainda maior na esfera médica e sobretudo farmacêutica, onde os efeitos dos estudos são muito pequenos em geral.
Conforme aponta Stegenga, as ferramentas para avaliar produtos médicos também são extremamente maleáveis e sujeitas a vieses conscientes ou inconscientes — em toda a suposta hierarquia, desde a evidência anedótica, passando pelo estudo de observação, até a meta‐análise. Quando alguém pesa esses fatores adequadamente, a conclusão óbvia e inevitável é de que sua atitude perante a pesquisa científica atual deve ser de extremo ceticismo.
Pode‐se dizer que a ciência médica, da forma como é praticada atualmente, é permeada por uma falácia da taxa‐base48 intrínseca em níveis estruturais profundos. Para aqueles que não conhecem esse fenômeno, uma explicação muito breve e simplificada pode ser útil aqui. Na verdade, podemos usar um exemplo com o qual todo o mundo já está familiarizado a essa altura: testes de doenças.
Imagine que você tem um teste com uma taxa de 5% de falsos positivos e 0% de falsos negativos. Agora, imagine que você aplica esse teste a uma população de 1000 pessoas, 40% das quais estão realmente com essa doença. Você esperaria 430 resultados positivos [0,4x1000 + 0,05x(1000 – 400)] e 570 negativos. Todos os negativos são verdadeiros. Dos positivos, 400 seriam verdadeiros e 30, falsos. Para muitos fins, não é um teste ruim. Se uma pessoa tivesse um resultado positivo, ela poderia ter 93,02% de certeza de que é um verdadeiro positivo.
Agora, suponha que você aplique exatamente o mesmo teste a uma população também de 1000 pessoas, mas que somente 20 pessoas (isto é, 2%) de fato têm a doença. Você esperaria 69 positivos [0,02x1000 + 0,05x(1000 – 20)] e 931 negativos. É claro que, tal como antes, todos os negativos são verdadeiros. Porém, dos positivos, 49 são falsos e apenas 20 são verdadeiros. Em tal cenário, a probabilidade de que o seu teste positivo realmente signifique que você está doente é de apenas 28,98%.49 Se ninguém tivesse a doença, haveria 50 resultados positivos, todos os quais, é claro, seriam falsos.
O objetivo desse exemplo é enfatizar que, sem uma compreensão adequada da população estatística de onde se retira uma amostra de dados ou informação, essa amostra pode facilmente ser mal interpretada.
Como essa falácia caracteriza a ciência médica moderna de modo geral? Digamos que você encontrou um estudo publicado numa revista revisada por pares. Ele foi delineado de forma excelente e mostra resultados importantes; podemos nos sentir inclinados a presumir que os resultados positivos refletem um fenômeno verdadeiro. Ou seja, por exemplo, se o estudo mostra que um remédio funciona, passamos a achar que ele realmente funciona. No entanto, isso não é diferente de olhar para um único caso positivo daquele nosso teste muito bom, descrito acima, e achar que ele é verdadeiro tomando por base só a taxa de falsos positivos do teste. Como vimos, apesar de o teste em si ser bastante preciso, se ninguém estiver doente, você ainda consegue produzir um resultado positivo se testar pessoas suficientes.
Então, agora, suponha que o remédio na verdade não funciona — o que é análogo ao nosso cenário do exemplo anterior em que ninguém tem a doença. Se você conduzisse o estudo uma vez, ou mesmo 10 vezes, você esperaria que, a cada vez, ele produziria um resultado »negativo«; ou seja, que ele indicaria com precisão que o remédio não funciona. Mas e se você conduzisse o estudo 50 vezes? Ou 100? Você pode fazer com que um estudo muito bom produza o »falso positivo« que você quer.
O problema ao avaliar pesquisas publicadas em revistas revisadas por pares é que não temos ideia da verdadeira taxa‐base. Quando encontramos um estudo que indica que um remédio é eficaz, ou que não faz mal, não temos ideia de quantas vezes foi conduzido o mesmo estudo, ou semelhantes, indicando outros resultados. Além disso, é claro que, como mostrado acima, os estudos que chegamos a ver não são simplesmente uma amostra aleatória de um conjunto que não vemos, e sim uma amostra muito pouco representativa, extremamente desviada em direção aos »falsos positivos« de eficácia aparente ou aos »falsos negativos« de segurança aparente. E isso ocorre num contexto em que, para começar, os estudos em si já não são muito bons!50
Como conclui Stegenga: num nível epistêmico‐estrutural básico, nas condições que atualmente prevalecem, devemos, portanto, manter mínima a confiança nas alegações da ciência médica em relação à segurança ou à eficácia de produtos médicos. Até mesmo Stegenga, que parte de uma perspectiva totalmente burguesa e reformista, reconhece que ficar só aparando as arestas desse problema — ferramentas melhores de meta‐análise, padrões mais rigorosos para se conduzir pesquisas etc. — não basta para superar essa profunda falha estrutural.
No entanto, a conclusão de Stegenga frente a esse fato é derrotista: ele faz um apelo por uma »medicina mais gentil«, para mitigar os danos concretos e evidentes, cada vez mais acumulados, causados à população pela medicina venenosa de nossa época. Porém, o problema não são a ciência e a medicina em si, e sim os entraves que o capitalismo lhes coloca.
A partir de um certo estágio, a ciência sob o capitalismo atinge um ponto de inflexão inevitável, após o qual ela se degenera gradualmente no seu oposto. Internamente, isso ocorre porque quanto mais o conhecimento científico aumenta, mais o empreendimento inteiro da ciência passa a ser mediado, isto é, a depender da confiança em instituições e órgãos profissionais que assegurem que o conhecimento acumulado por outras pessoas foi produzido cientificamente. Contudo, à medida que o capitalismo evolui para o imperialismo monopolista, torna‐se cada vez mais difícil, para essas instituições e órgãos, não se subordinar diretamente aos interesses (»conspirações«) da classe dominante.
Além disso, à medida que as grandes massas da população são reprimidas, engessadas, impedidas de participar elas mesmas da ciência, torna‐se impossível — para o pequeno segmento hiperdoutrinado, fortemente disciplinado e policiado que está envolvido ativamente na ciência — metabolizar o verdadeiro conhecimento e a verdadeira informação produzidos. Conforme mostramos, isso não é só especulação teórica, podendo ser demonstrado empiricamente: é comprovável que o sistema de revisão por pares tem sido prejudicado pelas tendências hipermonopolísticas de concentração dentro do complexo MACIM.
Ciência de verdade, benéfica para as massas, numa escala que se assemelhe de alguma forma àquela em que supostamente ela é feita hoje, só seria e será possível sob as seguintes condições: controle direto e transparente, subordinado aos interesses democráticos de toda a população, e que esta se encontre livre de servidão, munida de educação e independência, capaz de ocupar e operar ela mesma, coletivamente, os órgãos e mecanismos que possam mediar tamanha escala de troca de informações de forma realmente satisfatória. O trabalho alienado de uma minoria de »especialistas«, algemados e restringidos por sua subordinação à classe dominante, precisa se tornar o empreendimento coletivo, gratificante intelectual e espiritualmente, de todos nós. Em suma, o florescimento contínuo da ciência só é possível sob o comunismo.
Por motivos óbvios, os elementos pequeno‐burgueses dentro do movimento de resistência ao programa do coronavírus — e de crítica à virologia de modo geral — não têm interesse em reconhecer essa realidade. Em vez disso, eles geralmente propõem soluções individualistas absurdas e impraticáveis, em que se espera que, de alguma forma, as pessoas façam elas mesmas essas pesquisas independentemente — cada átomo burguês contido em si mesmo, presumivelmente começando com meditações cartesianas e avançando para uma visão de mundo completa e autoelaborada. Na verdade, isso é típico do programa geral de »resistência« proposto pelos »céticos« e »críticos« pequeno‐burgueses: pesquise você mesmo, cultive seus próprios alimentos, investigue o que você deve ou não comer, viva fora da rede etc. — é tudo muito fácil, você só precisa de tempo livre infinito, recursos infinitos e nenhuma obrigação ou compromisso!
O estado miserável e degradado em que as grandes massas da população global atualmente vivem não se deve à sua pecaminosidade, preguiça, idiotice ou covardia, ao contrário do que afirma a direita anti‐covid. É porque uma luta de classes tremendamente coordenada, calculada e implacável vem sendo travada contra elas. As massas, por sua vez, evidentemente resistiram — aberta ou secretamente, ativa ou passivamente, em inúmeros focos de luta grandes ou pequenos. Na verdade, o que mais dificultou e limitou o sucesso dessa resistência foram precisamente a idiotice, a covardia e a ingenuidade dos elementos pequeno‐burgueses que se instalaram como líderes apenas para desviar o caminho o tempo todo, com suas fantasias de reconciliação com a classe dominante e suas soluções individuais escapistas.
Contudo, uma vez que se entende a verdadeira escala e a natureza do que temos diante de nós, resta apenas uma conclusão: a única maneira de realmente manter e aprimorar nossa saúde e a dos demais é através da luta de classes. A classe dominante que controla o complexo MACIM — esse maquinário vasto e cruel de dominação, exploração e debilitamento — precisa ser derrubada de uma vez por todas. É claro que, sem teoria revolucionária, não pode haver um movimento revolucionário; isso inclui expor as ideologias que a classe dominante emprega para confundir, desviar e prejudicar a luta popular contra ela. Na Parte 3, vamos mostrar por que a virologia acadêmica precisa ser incluída entre as mais perniciosas dessas ideologias.
Referências
1 Norman Bethune, The Wounds. Ontario: Little Books of Hope, 1939, https://marxistleninist.wordpress.com/2009/02/14/norman-bethune-wounds/.
2 Richard Levins, »The Two Faces of Science«. Palestra no seminário HealthRoots Political Economy of Health, Harvard School of Public Health, 17 out. 2012, https://www.youtube.com/watch?v=aEA0ut1Guh4.
3 N. T.: o trocadilho original (MAIMS — plural de maim — »mutilação«) infelizmente foi perdido.
4 Ivan Illich, Medical Nemesis: The Expropriation of Health. New York: Pantheon, 1976, cap. 4.
5 Jacob Stegenga, Medical Nihilism. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 7.
6 German Lopez, »9 Of 10 Top Drugmakers Spend More on Marketing than Research«. Vox , 11 fev. 2015, https://www.vox.com/2015/2/11/8018691/big-pharma-research-advertising.
7 Ibid.
8 Chris Ariens, »Here Are the Biggest Advertisers on Fox News, CNN and MSNBC«. Adweek, 9 mar. 2018, https://www.adweek.com/tvnewser/here-are-the-biggest-advertisers-on-fox-news-cnn-and-msnbc/.
9 N. T.: Brandy Vaughan foi uma ex‐executiva do laboratório farmacêutico Merck que posteriormente se tornou conhecida como ativista antivacina. Vaughan foi encontrada morta em sua residência em dezembro de 2020, após vários anos de intimidação e perseguição. »Vaccine Whistleblower Brandy Vaughan Found Dead Inside Her Own Home as Police Open Investigation«. Medical Kidnap, 18 dez. 2020, https://medicalkidnap.com/2020/12/18/vaccine-whistleblower-brandy-vaughan-found-dead-inside-her-own-home-as-police-open-investigation/.
10 Illich, Medical Nemesis, cap. 7.
11 Ibid., cap. 4.
12 Ibid.
13 Matthew Niederhuber, »The Fight Over Inoculation During the 1721 Boston Smallpox Epidemic«. Science In The News, Harvard University, 31 dez. 2014, https://sitn.hms.harvard.edu/flash/special-edition-on-infectious-disease/2014/the-fight-over-inoculation-during-the-1721-boston-smallpox-epidemic/.
14 Silvia Federici, Calibã e a Bruxa (trad. Coletivo Sycorax). São Paulo: Elefante, 2017, p. 252 – 53 (citações de Michel Foucault).
15 Ilich, Medical Nemesis, cap. 4.
16 Richard Lewontin, »Biology as Ideology« (parte 3). CBC Massey Lectures, programa de rádio, nov. 1990, https://www.youtube.com/watch?v=UZdw9pymMI0.
17 Ilich, Medical Nemesis, cap. 4.
18 Ibid.
19 Ver Jennifer Margulis, The Business of Baby (New York: Scribner, 2013) e Ina May Gaskin, Ina May’s Guide to Childbirth (New York: Bantam, 2003).
20 Ilich, Medical Nemesis, cap. 4.
21 Ibid., cap. 7.
22 Ibid., cap. 4.
23 Stegenga, Medical Nihilism, p. 184.
24 Ibid., p. 5.
25 N. T.: revista da Associação Médica dos EUA.
26 N. T.: órgão de controle de qualidade de alimentos e medicamentos nos EUA, mais ou menos equivalente à ANVISA do Brasil.
27 Engelbrecht et al., Virus Mania, Introdução.
28 N. T.: lei que autoriza a FDA a recolher taxas dos fabricantes de remédios para financiar o processo de aprovação de medicamentos novos.
29 Ibid.
30 Ibid., cap. 8.
31 »National Childhood Vaccine Injury Act«. Wikipedia, The Free Encyclopedia, versão 27 set. 2022, https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=National_Childhood_Vaccine_Injury_Act&oldid=1129783439, arquivado em: https://web.archive.org/web/20221125055505/https://en.wikipedia.org/wiki/National_Childhood_Vaccine_Injury_Act.
32 T. Mohr, »Imperialism Today Is Conspiracy Praxis«. MagMa – Magazin der Masse, 24 set. 2022, https://magma-magazin.su/2022/09/t‑mohr/imperialism-today-is-conspiracy-praxis/.
33 Robert F. Kennedy Jr., »Deadly Immunity«, em: Engelbrecht et al., Virus Mania, cap. 8.
34 Ibid.
35 Ibid.
36 Ibid.
37 Ibid.
38 Julia Crawford, »Does Bill Gates Have Too Much Influence in the Who?«. SWI swissinfo.ch, 10 mai. 2021, https://www.swissinfo.ch/eng/politics/does-bill-gates-have-too-much-influence-in-the-who/46570526.
39 Brian Martinson, »Scientists behaving badly«. Nature, 9 jun. 2005, p. 737 – 38, em: Engelbrecht et. al., Virus Mania, cap. 2.
40 Robert F. Kennedy Jr., »Deadly Immunity«.
41 Levins, »The Two Faces of Science«.
42 Engelbrecht et al., Virus Mania, cap. 1.
43 Ibid., cap. 2.
44 Richard Smith, »Where is the Wisdom? The Poverty of Medical Evidence«. British Medical Journal, nº 303 (5 out. 1991), p. 798.
45 Engelbrecht et al., Virus Mania, cap. 2.
46 Ibid.
47 John P. A. Ioannidis, »Why Most Published Research Findings Are False«, conforme citado em: Engelbrecht et al., Virus Mania, cap. 2.
48 Nuno Machado, »O que é a taxa de base (base rate)?«. The Blindspot, 7 jul. 2021, https://theblindspot.pt/2021/07/07/o‑que-e-a-taxa-de-base-base-rate/.
49 Exemplo adaptado de: »Base rate fallacy«. Wikipedia, The Free Encyclopedia, versão 6 dez. 2022, https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Base_rate_fallacy&oldid=1125810770.
50 Encorajamos a leitura desta brilhante paródia da pesquisa médica moderna que, com efeito, resume o argumento desta seção inteira numa página sucinta: Richard Levins, »O Método Científico Para o Mercado de Hoje«. The Mathematical Intelligencer, nº 37, vol. 1 (1 mar. 2015), p. 47, https://link.springer.com/article/10.1007/s00283-014‑9488‑7.
Traduzido e publicado pela primeira vez por AntiTecnofascismo (original em inglês aqui)
Imagem da capa: Homem ferido, século XVI, wikimedia commons